13.7.21

REFLEXÕES NO ATELIER

 

Obra Tormento - por Taís Luso


           

                - por Tais Luso de Carvalho


Mais uma madrugada e mais outro amanhecer, sempre o mesmo ritual: a noite despedia-se enquanto surgia a tímida luminosidade do amanhecer.

Mariana permanecia no sótão da casa entre telas e pincéis. Ali em seu atelier, ela dava vazão às suas emoções, colocando em cada pincelada um pouco de seu espírito, por vezes melancólico e solitário. Os suaves e disciplinados acordes uniam-se em melodias que lhe tocavam o coração: as Ave-Marias de Gounod, de Shubert, de Donati...

Não demorou muito para que ela largasse as telas e desse descanso aos pincéis. Já cansada, debruçou sua cabeça sobre a mesa e passou a refletir sobre sua vida, seus encantos e desencantos, seus afetos, seus amigos, sua família.

Simpatizante da filosofia budista questionava-se, também, sobre a reencarnação e outros tantos caminhos. Mas até aquele momento não chegara a um consenso. Ao mesmo tempo em que estava sintonizada com a estética, estava em dissonância com seus valores e com sua espiritualidade.

E ali viu-se só.

A música inundava o atelier amenizando sua solidão. As tintas e os pincéis, antes deixados de lado, agora testemunhavam os abafados soluços de Mariana. O tempo foi cumprindo o seu percurso até que Mariana levantou a cabeça como se estivesse emergindo de profundezas. E fixou, ao acaso, seu olhar num quadro esquecido, dependurado e coberto num canto do atelier, quase diante de sua mesa, ao lado de objetos insignificantes.

Com curiosidade, levantou-se e removeu um pano que encobria o quadro que havia pintado há muitos anos. Um pouco surpresa, ficou a olhar aquele rosto de expressão suave, olhos cheios de ternura e os cabelos castanhos caindo sobre o belo rosto, numa suave harmonia.

Voltou à mesa e dali ficou a observar aquela expressão tão singular: um olhar que não recriminava e lábios que não acusavam. Talvez ela tivesse descoberto, em algum recanto de sua alma, sentimentos de generosidade e complacência. E pintara um retrato comprometido com esses sentimentos e com suas carências.

Já menos amargurada, levantou-se e substituiu a música: colocou “Chanson d’enfance” e enterneceu-se como se buscasse um afago; queria sentir apenas a alegria do momento, e ter uma paz que não oscilasse. E assim ficou por bom tempo, recostada no sofá, deixando-se conduzir pelos suaves acordes.

Mais tarde aproximou-se do quadro e fixou seus olhos na pintura:

- E agora Amigo? Estamos aqui sozinhos, frente a frente... Mas nada ouso Te pedir, guardo na memória a tua Via-Sacra... Mas procuro apenas alguém que me escute, que retorne comigo à infância, e que compartilhe de meus projetos; ainda que pequenos projetos; e que na solidão de minhas madrugadas esteja presente...

Sinuoso, o sol invadiu o atelier deixando uma sensação de conforto. Mariana caminhou em direção ao quadro, beijou o meigo rosto e encostou a porta...

- Até amanhã.



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                              ( Conto publicado na Revista de Artes Dartis nº 24 )